terça-feira, 21 de outubro de 2008

HALL DA FAMA


SEGUNDO CONCURSO LITERARIO DA TAVERNA
SEGUNDO COLOCADO

O JURI -

By NIGEL

Eram cinco da madrugada. No banheiro de lajes brancas, parado em frente à louça da pia, segurava a navalha com a mão um pouco trêmula, o queixo protejatado adiante, a lâmina mirando o próprio rosto.

Eu não dormia a três dias. Era um julgamento longo, e o júri agora examinava mais uma evidência, um tímido fio de sangue descendo pela lateral da face. O espelho alegava dolo, apontando para a mão trêmula ainda com a navalha em mãos. Pingos começaram a cair sobre a louça pesada da pia, e dançavam até o ralo.

Eram três dias de memória em depoimento. Havia defensor. Minha mente alega instinto, e pede abrandamento da pena. Tudo o que fiz até hoje foi por instinto, e assim espero convencer o juri que todo e qualquer dos meus atos foi uma interminável cadeia de confusões e ciladas da minha humanidade. E assim declaro que sim, eu me esgueirei noite adentro até aquela mulher por instinto. Eu não poderia ter feito melhor, e espero que entendam, minhas culpas, que o fiz da melhor forma que eu sei. Com bravura incansável foi que obrei laboriosamente pela madrugada, e cada passo de dança foi um mal menor para um bem maior.

E se é que a deixei foi novamente por instinto. Grandes mentiras... ela era uma grande mentirosa... e que tipo de cínico fui eu que relevei cada uma das mentiras. Aparar o amor como um golpe em falso no ar, para distrair, porque o próximo golpe que vem é uma estocada precisa no coração. E o promotor alega que por isso, não dei chance de defesa. Mas ela era uma suicida. Ela havia puxado o gatilho anos atrás, e o cão da arma levou quatro anos indo lentamente em direção à espoleta da bala. Eu a deixei por sobrevivência. Era meu instinto.

Para estes fins eu declaro, que o sabor de ter feito alguma justiça poética foi doce. Havia um sabor doce nisso tudo. Enquanto minha boca dizia "adeus", o grilo em meu ombro dizia "chore por mim... chore... agora deves chorar". Mas até o choro dela era mentiroso.

Deixei o lavabo, e na cozinha o led da cafeteira tinha acabado se apagar-se. Pausa: café fumegante. Esparadrapo no rosto.

O saco de areia pendia na sala pouco mobiliada. Foi também por instinto, eu insisto em minha defesa. Eu não conseguia perdoar a inépcia de Mateus com as luvas. A cada vez que saía de sua guarda com a esquerda, seu nariz se tornava um alvo vermelho e branco, e eu gentilmente mostrei isso a ele. Mirei no bull's eye, e desci sobre ele como um trem de carga descarrilhado. O direto quebrou seu nariz em três lugares, fiquei sabendo. É preciso quebrar um nariz ao menos duas vezes para que não sangre em excesso, e a primeira fratura de Mateus foi um presente meu.

Há uma generosidade em mostrar a alguém um erro dessa maneira. Trens de carga...

Eu saía do galpão de reparos toda a noite. O barulho infernal das buzinas, caixas de ferramentas, cada milímetro daquele lugar era recoberto de graxa. Não foi minha a idéia de colocar uma cobra morta dentro do armário de Ademar. "Mas você riu! Você riu!" berrava o promotor. Sim, eu ri. Eu ri até o momento em que lívido, e entre todos os colegas no vestiário, podia-se ver a massa de fezes correr pelas pernas de Ademar. Ele demitiu-se. Eu não pus a cobra em seu armário, eu a matei apenas. "Então foi cúmplice!" Sim eu fui.

Eu devo ir longe nisso? Já são três dias de julgamento. Toda uma trajetória de tolices, e ontem eu fiz trinta e três anos. Ontem eu morri. Eu devo merecer o Prêmio Darwin por ter cooperado com a seleção natural. Por no dia do meu aniversário resvalar no tapete do banheiro enquanto me barbeava, e acertar minha própria jugular. Já faz um dia que meu corpo jaz gelado no piso do banheiro. Ninguém telefonou ainda. A cafeteira ficou ligada, e nas próximas duas horas, um curto circuito irá atear fogo em todo o apartamento. Não posso fazer nada... estou apenas rezando para que o vizinho veja a fumaça antes de sair para trabalhar, e deixar os dois filhos pequenos em casa. Espero que ele veja.

Do meu lado está aquela garota mentirosa que se suicidou. Também a cobra, e também Ademar, que coberto de vergonha caminhou macambúzeo até em casa, e não viu aquele caminhão dobrar a esquina.

Estamos os três aqui, esperando meu veredito.

===Fin===

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